terça-feira, 30 de agosto de 2011

Sepulcros Caiados


“Por que não se vendeu este ungüento por trezentos dinheiros e não se deu aos pobres?” (Jo, 12:5), perguntou Judas Iscariotes a Maria, irmã de Lázaro, enquanto esta ungia os pés de Jesus e os enxugava com os próprios cabelos. João esclarece que “ele disse isto, não pelo cuidado que tivesse dos pobres, mas porque era ladrão e tinha a bolsa, e tirava o que ali se lançava” (Jo, 12:6). E Jesus, que conhece o coração de todos, retrucou: “Deixai-a; para o dia da minha sepultura guardou isto; porque os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes.”
Não sei se por causa dessa passagem bíblica ou por alguma intuição, desconfio dos que exaltam sempre e em alta voz a necessidade de ajudar os pobres. Não, evidentemente, por desconhecer a caridade como uma das virtudes teologais, mas por temer a corrupção e a violência que nascem dessa mentira.
O amor é um “vínculo da perfeição” (Col, 3:14), que precisa ser não apenas representado fisicamente, para que os olhos vejam e os ouvidos ouçam, mas antes de estar enraizado no espírito. Sem decorrer de sentimentos puros, a caridade passa a simples esmola, e é peçonhenta. La Rochefoucald escreveu que “a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”. Pior que isso talvez, Duque! A hipocrisia é um vício forte, que ajunta desprezo, sonsice e covardia. Ela não homenageia a virtude, ela mimetiza a virtude, para captar o reconhecimento a que só esta faria jus.
É interessante observar que João afirma que “Judas tinha a bolsa, e tirava o que ali se lançava”. Pelo visto, Judas administrava os recursos do grupo que andava com Jesus, e já teria furtado outras vezes dinheiro da bolsa (São João diz que ele “tirava o que ali se lançava”, dando a impressão de que era algo corriqueiro).  A venda do valioso ungüento poderia ser uma ótima oportunidade de subtração de uma boa quantia, terá pensado o Iscariotes. Mas como fazer para que o dinheiro viesse para bolsa? Ora, Jesus estava presente; era preciso simular algo muito verossímil para enganá-Lo, como terá imaginado a mente doentia de Judas. A falsa caridade poderia, sem dúvida, prestar-se a essa tarefa enganadora, daí a proposta viperina da ajuda aos pobres.
Aprendemos, assim, com o Evangelho de São João, que a hipocrisia é perigosíssima, pois busca ocultar outros vícios da maneira mais insuspeita possível: vestindo-se de uma aparência de virtude. Não por acaso, em outra passagem bíblica (Mt, 23:27), Jesus compara os hipócritas a sepulcros caiados, que são vistosos por fora, mas guardam matéria podre por dentro.
Nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, o nome de Judas não é mencionado expressamente nesse episódio. Em Mateus, diz-se que os discípulos de Jesus se indignaram com o desperdício do ungüento (Mt, 26:8); em Marcos, afirma-se que “alguns houve que em si mesmos se indignaram”(Mc, 14:4); em Lucas, é o anfitrião fariseu que se irrita com a cena (Lc, 7:39).
Se não é tão relevante saber quem foi exatamente o pecador que se irou, por outro lado é fundamental a importância que é dada por Jesus à ação amável da mulher, o que fica claro pela afirmação dEle, mencionada em Mateus (Mt, 26:13) e em Marcos (Mc, 14:9), de que aquela cena deveria constar do evangelho, para a memória daquela mulher.
Iscariotes, em contraste, acabaria por levar a sua corrupção ao limite, com a entrega do próprio Cristo nas mãos dos seus algozes. O vício da hipocrisia havia a tal ponto anestesiado a consciência de Judas que a sua afeição ao dinheiro já não conhecia limites, e poderia ser satisfeita ainda quando importasse a morte do seu mestre. Diz São João que o diabo havia posto no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que traísse Jesus (Jo, 13:2). E depois, o Satanás entrou no corpo de Judas (Jo 13:27), impedindo, assim, toda reação. Judas não hesitou em entregar Jesus à morte, por dinheiro.
Depois, sabe-se que Judas suicidou-se. Um fim natural para um homem que já não era senão uma coisa. A hipocrisia não tinha mais para onde expandir-se. As mentiras haviam esgotado todas as suas possibilidades malignas, e a visão da verdade foi dura demais para ser suportada por Judas.
Quanta beleza, verdade e atualidade perene tem o Evangelho!

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Teresina/PI, 26 de agosto de 2011
Nazareno César Moreira Reis
Membro da Academia de Letras da Confederação Valenciana

Um comentário:

  1. Texto belíssimo...

    Parabéns,

    Danilo N. Cruz - http://piauijuridico.blogspot.com/

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